domingo, 30 de agosto de 2015

Os assassinos do suicida: censura de livros durante a era Pinochet

O escritor chileno Gustavo Olate ficou preso
durante três meses em Villa Grimaldi

A ditadura de Pinochet desconfiava particularmente de livros e autores, sendo os confiscos comuns nas livrarias. Certa vez, o chefe de um destacamento militar ordenou o recolhimento de uma obra intitulada Cubismo. Ele tinha certeza de que aquilo tinha algo a ver com a Revolução Cubana...

Outra vítima foi o escritor Gustavo Olate. Ele havia publicado, em março de 1973, seis meses antes do golpe de Estado, um romance policial e de intriga psicológica chamado Los asesinos del suicida ("Os assassinos do suicida"). Após a morte de Salvador Allende no Palácio de La Moneda, morte que, segundo a tese oficial, foi causada por suicídio, o título dado com toda inocência ao livro por Olate tornou-se perigoso. O autor permaneceu detido por três meses até a confusão ser esclarecida, quando lhe informaram-lhe que a proibição continuaria a vigorar — a menos que ele mudasse o título da obra.

O falecido Erich Rosenrauch, austríaco de nascimento que viveu no Chile desde a tenra idade, publicou um romance em 1973 intitulado Muertos útiles. Todos os exemplares foram apreendidos, e Rosenrauch, cujos pais tinham emigrado para o Chile fugindo da perseguição nazista, foi preso. Soltaram-no quando os militares descobriram que o título do romance não tinha o significado presumido, mas o livro jamais foi liberado, e o manuscrito perdeu-se em consequência da apreensão durante as buscas na casa do autor.

(EDWARDS, Jorge. El libro, ese objeto peligroso. Cauce, Santiago, ano 1, n. 6, p. 24-25, jan./fev. 1984; MUÑOZ, Heraldo. A sombra do ditador: memórias políticas do Chile sob Pinochet. Rio de Janeiro: Zahar, 2010)


segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Toninho Vernáculo, chefe da revisão



Algumas atividades entortam as pessoas. Umas entortam o corpo, como as pernas arqueadas dos caubóis, a corcunda dos alfaiates, os braços desiguais dos tenistas, os ombros dos nadadores, a lordose das bailarinas de tchan music. Outras atividades — como a de polícia, agente financeiro, jornalista — entortam a cabeça. Meu amigo era jornalista.

Era. Meio que pirou. Isto já é o meio da história, vamos ao começo. Era copidesque, do tempo em que o copidesque tinha poder nas redações: reescrevia, corrigia e titulava as matérias. Não possuía nenhum talento especial, a não ser a intimidade com a gramática. Nem era jornalista formado, havia parado no meio o curso de Direito, fascinado pela oportunidade de trabalhar na “cozinha da redação”. Refogava concordâncias, descascava solecismos.

Chamava-se Antônio. Por ser baixo virou Toninho. E pela devoção à gramática Toninho Vernáculo ficou sendo. Seu talento valeu-lhe uma promoção, de copidesque para chefe da revisão. Passou anos e anos corrigindo originais. Novas tecnologias invadiram as redações no final da década de 1980. Com os computadores, acabou-se a revisão. Ao leitor, as batatas.

Toninho Vernáculo foi deixado num canto, espécie de dicionário vivo. Recorriam a ele quando tinham preguiça de consultar o manual. Irritava-se. Então, meio que piorou. Achava que alguns tinham questões pessoais com a língua portuguesa, arranca-rabos com a sintaxe. Um não suportava a crase. Aquele tinha escaramuças com o infinitivo pessoal. Outro abominava a regência. Toninho não aguentou, aposentou-se.

Novos desafetos da língua passaram a provocá-lo pela televisão, em casa. O ator Antônio Fagundes vinha andando para a câmera e atacava o pleonasmo: “Há muitos anos atrás investi no boi gordo”. A repórter de feira dizia que “o” alface encareceu. Lula confiava “de que” o partido sairia fortalecido. O jingle publicitário apelava: “Vem” pra Caixa você também! Toninho brigou com a tevê:

— É venha! Venha você! Vem tu!

Uma ótica anunciava: faça “seu” óculos... Meu amigo largou a tevê, pegou o jornal: vendas “à” prazo. Sentia-se acuado, pessoalmente agredido. Um dia, lendo Monteiro Lobato, topou com o conto “o colocador de pronomes”, no qual o personagem sai pela cidade corrigindo pronomes malcolocados. Iluminou-se. Era um recado.

Hoje, Toninho Vernáculo é um dos dois ou três santos da ortografia que andam por São Paulo corrigindo o português nas placas das padarias, nos cardápios dos restaurantes populares, nos anúncios classificados dos jornais. Telefona para os anunciantes:

— Olha, vendas a prazo não tem crase. Não se usa antes de palavra masculina.

Telefona para as regionais da Prefeitura, exigindo a retirada do acento agudo de placas de ruas e praças: Traipu, Itapicuru, Pacaembu, Barra do Tibagi, Turiassu (“é com c cedilhado”, implora)... Centenas de casos. Há dias encontrei-o comprando tinta e escada. Anunciantes de cerveja não quiseram mudar um cartaz, tinham rido dele. É um advérbio em “mente” abreviado, disseram, significa redondamente, de modo redondo. Retrucou: por que não de maneira redonda? Outros opinaram: é locução, como “fala grosso”. Protestou: chuva cai fininha, sol nasce quadrado, lua nasce quadrada. Riram. Resmungou: fiquem com a sua opinião, eu fico com a minha. Ia partir para a guerrilha armado de tinta e pincel, atacar os painéis de madrugada:

— Uísque é que desce redondo. Cerveja desce redonda!



(ÂNGELO, Ivan. Guerrilha urbana. In: ______. Melhores crônicas de Ivan Ângelo. Seleção e prefácio Humberto Werneck. São Paulo: Global, 2007.)