sábado, 25 de abril de 2015

Os anus de Rubem Alves

Fotografia de Flávio Cruvinel Brandão (2007).

Revendo as correções que uma revisora fizera num texto meu, segundo o Aurélio, encontrei esta frase divertida: ... e os anus fazendo os barulhos que lhes são característicos.... Que é que você conclui? Que estou escrevendo sobre gases fétidos barulhentos expelidos pelo orifício terminal do intestino. Não é nada disso. Falo sobre barulhos que fazem as aves anús, palavra que, segundo o Aurélio, não tem acento. A palavra que tem acento, talvez por estar localizada no assento, é ânus... Por via das dúvidas, ponho acento agudo, no u dos anús. Não quero que pios de anús sejam confundidos com puns.

(ALVES, Rubem. Por uma educação romântica. 9. ed. São Paulo: Papirus, 2002)

segunda-feira, 20 de abril de 2015

A lei de Murphy e o hífen perdido

Se alguma coisa pode dar errado, dará. E mais: dará errado da pior maneira, no pior momento e de modo que cause o maior dano possível. 
Edward Aloysius Murphy Jr. (1918–1990)


Lançamento da sonda Mariner I (1962)
O desastre ocorrido com a primeira sonda interplanetária dos Estados Unidos foi extremamente oneroso e quase pôs um fim prematuro a toda a exploração espacial americana. A Mariner I havia sido derrubada pela falta de um hífen.

Quando a “corrida espacial” entre os Estados Unidos e a União Soviética começou, em fins da década de 50, o Laboratório de Propulsão a Jato da Nasa (JPL) apresentou planos grandiosos para uma série de sofisticadas sondas espaciais, a serem denominadas Mariner. O lançamento dessas grandes sondas, contudo, dependia de um novo foguete mais poderoso, o Atlas-Centauro, cujo projeto mostrou-se problemático. O JPL, finalmente, teve de satisfazer-se com um desenho menos sofisticado, batizado, de início, Mariner Ranger, ou apenas Mariner R, que seria lançado pelos propulsores Atlas-Agena B, então disponíveis. O programa Mariner, mesmo assim, custou mais de US$ 500 milhões.

A Mariner I deveria ser a primeira espaçonave interplanetária destinada a explorar os planetas mais próximos, ou seja, Vênus, Mercúrio e Marte. A sonda não tripulada tinha asas com células para captação de energia durante a jornada e dispunha de instrumentos para estudar Vênus, o planeta almejado. Ela foi lançada em 22 de julho de 1962. Cerca de quatro minutos depois do disparo, contudo, o lançador executou uma manobra não programada e começou a desviar-se do curso. O oficial da Nasa incumbido da segurança tinha menos de um minuto para decidir entre interromper o lançamento (e destruir milhões de dólares em equipamento) ou permitir o prosseguimento do voo (e correr o risco de uma sonda espacial errante cair em área populosa ou em rota de navegação). A decisão foi de abortar a missão. 


Deu no NY Times...
Duas foram as causas do acidente, de acordo com a investigação subsequente da Nasa. Primeiro, ocorreu um problema com o sistema de orientação a rádio do foguete. Para essa eventualidade, porém, os planejadores da missão estavam preparados com um computador de orientação sobressalente que entraria em missão em caso de falha do sistema principal. Infelizmente, o programa do computador de orientação continha um erro minúsculo, mas fatídico. Faltava-lhe um único caractere, nada mais que um hífen. Em consequência do hífen perdido — possivelmente, um erro tipográfico, ou omissão do programador —, a espaçonave passou a fazer mudanças de curso desnecessárias. O hífen (indicando ajustamento estatístico) não foi incluído na expressão “R-dot-bar sub n” (“n” = valor ajustado da derivada de raio). O certo seria “R-dot-bar sub-n”. O erro levou o software a tratar pequenas variações normais de velocidade como alterações sérias, o que induziu o computador a promover automaticamente uma série de mudanças de curso, emitindo comandos de orientação impróprios, que afastaram a espaçonave do curso certo. O erro de programação não foi detectado nas verificações prévias, talvez por negligência decorrente do excesso de segurança, uma vez que o sistema de orientação a rádio nunca falhara durante os testes. Um relatório específico posterior explicou a ocorrência da seguinte forma:


“Não se sabe por quê, faltou um hífen no programa de orientação do computador de bordo, o que levou instruções falhas a comandar o foguete, desviando-o para a esquerda e para baixo... Basta dizer que a primeira tentativa de voo interplanetário dos Estados Unidos fracassou pela falta de um hífen.”

O veículo custou mais de US$ 80 milhões, o que levou o escritor de ficção científica Arthur C. Clarke (1917–2008) a referir-se ao erro como “o hífen mais dispendioso da história”.


(WEIR, Stephen. A lei de Murphy e o hífen perdido. In: ______. As piores decisões da história. Rio de Janeiro: Sextante, 2014, p. 190-193)


Observação: A verdade é que a Nasa, o escritor Arthur Clarke e o New York Times cometeram um equívoco histórico (e que perdura até hoje, tanto que foi inconscientemente reproduzido pelo autor do livro cujo trecho é supracitado) na descrição do sinal ausente como hífen; trata-se de um traço sobrescrito, mais conhecido como overline ou superscript bar, usada na fórmula matemática em questão




Tal equívoco se consagrou e até as mais diversas e recentes publicações sobre o caso falam em hífen. Em suma: um erro em cima de outro erro, deixando o errado ainda mais errado.

segunda-feira, 13 de abril de 2015

O revisor Baudelaire: Les erreurs du mal


Um livreto de 1848, que trazia um texto de Edgar Allan Poe traduzido por Baudelaire, foi destruído a pedido do tradutor por causa de um erro em seu nome. Na capa se lia “Beaudelaire”. Talvez esse evento tenha gerado uma preocupação incurável, quase enfermiça, de Baudelaire pelas erratas. Ele, descuidado com todas as suas coisas, tornou-se implacável. Corrigia pessoalmente. Mudava-se para perto da tipografia durante o período de edição de um algum de seus livros. Vigiava, pedia provas constantes. Depois do martírio desse afã de correção, a edição de As flores do mal saiu com erratas. Algumas perturbadoras, como a mudança do título de um poema, ou vie por ville. Essas erratas têm criado largas discussões entre os críticos e um elemento de imprecisão em certos poemas. O leitor, apesar do trabalho denodado de Baudelaire, ignora realmente o que disse o poeta em alguns versos. Após sua morte, as primeiras provas corrigidas por sua mão infatigável foram levadas a leilão público. Foram vendidas por 40 mil francos, valor que ele não ganhou em toda a sua vida.

(ARRUFAT, Antón. De Las Pequeñas Cosas. Valencia: Editorial Pre-Textos, 1997, p. 142-143)

Provas corrigidas de Flores do mal (1857) com diversas anotações de Baudelaire

Em dezembro de 1856, quando seu relacionamento com Michel Lévy, o editor de suas traduções de Poe, estava passando por um período difícil, Baudelaire repentinamente recorreu a Auguste Poulet-Malassis, um jovem publicador de Alençon, na Normandia. O poeta confiou ao seu futuro amigo a tarefa de imprimir e publicar um livro de poesias, em sua maior parte composto por textos reunidos durante os últimos cinco anos, e que, até então, só haviam aparecido em periódicos. Poulet-Malassis tinha a reputação de ser um editor honesto e também – o que seria o fator decisivo – um tipógrafo de categoria. A intenção era montar um livro, insistia Baudelaire, “uma obra de material bom, apesar de escasso, que parecesse substancial e fosse bem apresentado”. Uma vez que o manuscrito, preparado por um copista, tinha desaparecido, juntamente com quase todo o conjunto de provas tipográficas corrigidas, que provavelmente estavam manchadas demais para serem mantidas, essas provas de prelo são, hoje, o único documento que nos permite reconstruir a gênese de As flores do mal, da remoção da primeira dedicatória a Théophile Gautier, em 8 de março de 1857, até as últimas correções, realizadas na segunda metade de maio. Entre idas e vindas entre Alençon e Paris, elas comprovam o cuidado atento do autor para com a ortografia (moderadamente tradicional), a pontuação (de acordo com o significado, mas também com a “declamação”) e o layout. Elas registram as perguntas e os pedidos de Poulet-Malassis (raivosamente rabiscadas por Baudelaire) para corrigir e devolver rapidamente as últimas provas tipográficas. Além disso, as anotações do poeta e algumas recomendações são evidência de sua tensão nesse período crucial e da ansiedade que o tornava indiferente com relação à exasperação do editor que ele tinha escolhido, como ele o lembrava, porque ambos compartilhavam da ideia de que “em qualquer tipo de publicação, nada mais é admissível a não ser a perfeição”.

(THE EUROPEAN LIBRARY. Corrected page proofs of Les Fleurs du mal. 6 mar. 2014. Disponível em:
 <http://www.theeuropeanlibrary.org/tel4/record/1000093325392>. Acesso em: 2 abr. 2015).

domingo, 5 de abril de 2015

Mulder & Scully = Holmes & Watson

Cenas do episódio Fogo (1ª temporada, 1993). Legendas em português da Netflix

O relacionamento entre Mulder e Scully, agentes do FBI protagonistas da série Arquivo X, é inspirado na relação entre os personagens de Sir Arthur Conan Doyle — Sherlock Holmes e John Watson, respectivamente. E ambos, Mulder e Scully, estão completamente cientes dessa semelhança. Em Fire (11º episódio da 1ª temporada, dezembro de 1993), Scully diz: So, Sherlock, is the game afoot?. E Mulder responde: I’m afraid so, Watson. A expressão vem do conto A granja da abadia (The Abbey Grange, 1904), em que Holmes diz: Come Watson, come! The game is afoot!.[1] Scully tem toda a razão: Mulder é Holmes. Ele até parece Holmes: bem-vestido, alto, magro e lânguido. Mulder também gosta de deitar e descansar assistindo à TV, assim como Holmes descansa ouvindo música; e ambos são inteiramente brilhantes (Mulder, de fato, tem uma memória fotográfica). O cenário de Arquivo X também é muito holmesiano, um aspecto criado pelo produtor da série, Rob Bowman: Por causa do nevoeiro, das condições nubladas durante a maior parte do tempo e da chuva, Arquivo X manteve um pouco de Sherlock Holmes [...].
"Come Watson, come! The game is afoot! Not a word!
Into your clothes and come!" (Ilustração de Sidney Paget, 1904)

Scully também está certa de que ela interpreta o Watson para o Holmes de Mulder. Ela também é médica, assim como Watson. Seu papel como médica é significativo, porque os médicos são detetives, também, de alguma forma; leem sintomas do paciente e detectam a causa, por vezes, uma doença, ou às vezes um crime. Scully também está  como ela corretamente observa — quase sempre dois passos atrás de Mulder, assim como Watson em relação a Holmes. O que eu estou pensando, Mulder, diz Scully, é a forma como isso me soa familiar. Interpretando Watson para o seu Sherlock. Você me exibindo pistas, uma a uma. É um jogo... e, como de costume, você está escondendo alguma coisa de mim. Você não está me dizendo alguma coisa sobre este caso (Fight Club, 20º episódio da 7ª temporada). Scully pode seguir Mulder, porque ela é uma detetive — está simplesmente muito mais próxima da sólida evidência empírica.
Cenas de Clube da Luta (7ª temporada, 2000)
Enquanto a mente de Mulder já andou passos à frente para uma conclusão quase sempre bizarra (‘ele é um vampiro, ou um monstro, ou um demônio, ou um alienígena’), Scully, por outro lado, pensa como nós; e nós, os espectadores, somos destinados a nos identificar com sua personagem, assim como nos identificamos com Watson. E, assim como nós aprendemos sobre o gênio de Holmes por meio das perguntas de Watson, Scully faz as nossas perguntas, e Mulder fornece as respostas brilhantes.”

(Extraído de SKOBLE, Aeon J.; SANDERS, Steven M. Philosophy of TV Noir. Lexington: University Press of Kentucky, 2008)

Vale observar o que declarou certa vez o criador da série, Chris Carter: “Eu não era um grande fã de ficção científica. Todavia, eu amava Júlio Verne e Sherlock Holmes. Ambos entraram em jogo em Arquivo X”.






[1] De acordo com Leslie Klinger, um dos maiores especialistas do mundo em Sherlock Holmes, “valendo-se de seu conhecimento de Shakespeare (adquirido, sugerem alguns, no curso de sua breve carreira de ator), Holmes parafraseia Henrique IV, parte I, Ato I, Cena 3: ‘Before the game is a-foot’ (literalmente: ‘Antes que a caça seja levantada’) e Henrique V, ato III, Cena 1: ‘The game is afoot!’. Apesar da identificação pública da expressão com Holmes, não há registro de que ele a tenha usado em outro contexto; o próprio Watson usa a expressão uma vez no conto Vila Glicínia (1908). Ela, é portanto, um grau mais respeitável que o popular ‘Elementar, meu caro Watson’, que não aparece em nenhum lugar do Cânone”. Em outras traduções publicadas em português, temos “o jogo está em andamento”; “o jogo começou” etc. A série Sherlock, da BBC, atualizou a fala de Holmes para “The game is on”.