sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Quem mexeu no meu hífen?


O primeiro registro lexicográfico de pé-de-moleque com hifens
(Diccionario brazileiro da lingua portugueza, Antonio Joaquim de Macedo Soares, 1889).


De 8 a 14 de outubro de 1990, em Lisboa, os representantes dos sete países que haviam assinado o acordo de 1986 no Brasil ratificaram suas posições [...]. No caso do hífen, os países adotariam as complicadas regras que já eram motivo de piadas no Brasil, como a mudança de contra-senso para contrassenso e auto-retrato para autorretrato, em que um traço é substituído por uma letra adicional. Nas exceções consagradas pelo uso, a água-de-colônia continuaria com seus dois hifens, mas o pé-de-moleque ficaria sem os seus, gerando dúvidas sobre o critério utilizado pelos acadêmicos para definir a expressão consagrada pelo uso. Vendidas no Brasil desde o século XIX, as águas de Colônia nunca haviam portado hifens, nem nos rótulos, nem nas menções da imprensa, enquanto pé-de-moleque, duplamente hifenizado, já era registrado desde 1878 em jornais, e 112 anos de uso pareciam ser um período mais que suficiente para uma consagração.


(GEHRINGER, Max. Quem mexeu no meu trema?. São Paulo: E-Galáxia, 2014. p. 105-106)

terça-feira, 15 de setembro de 2015

O dia em que o gramático quis enforcar o revisor

O gramático Napoleão Mendes de Almeida em seu escritório no centro de São Paulo (1993) - Arquivo FSP



Contou-me Napoleão Mendes de Almeida que, por ordem expressa de Júlio de Mesquita Filho, diretor de O Estado de S. Paulo, não se usava no jornal o substantivo fracasso – italianismo que, segundo o chefe, devia ser substituído por sinônimos de etimologia portuguesa, como malogro. Napoleão mantinha, no jornal dos Mesquitas, a coluna Questões vernáculas, em que respondia a perguntas dos leitores. Um deles, mais atento, indagou por que, n'O Estado, não se lia o termo fracasso, de uso tão frequente. O professor escreveu a resposta:


Sempre que possível, convém escoimar o texto de estrangeirismos como fracasso. Dispomos, em português, do correspondente malogro, que equivale à perfeição ao italianismo a que se refere o prezado leitor. Agora perguntamos: se temos, em nosso idioma, palavras de tão legítima formação, como malogro, por que dar preferência ao exótico fracasso quando podemos, em muito melhor português, substituí-lo pelo vernáculo malogro?

Ao receber os originais da coluna, o obediente revisor não teve dúvidas: onde havia fracasso, punha uma emenda para que se lesse malogro... A coluna virou, assim, um verdadeiro samba do crioulo doido:

Sempre que possível, convém escoimar o texto de estrangeirismos como malogro. Dispomos, em português, do correspondente malogro, que equivale à perfeição ao italianismo a que se refere o prezado leitor. Agora perguntamos: se temos, em nosso idioma, palavras de tão legítima formação, como malogro, por que dar preferência ao exótico malogro quando podemos, em muito melhor português, substituí-lo pelo vernáculo malogro?

O professor Napoleão quase morre de infarto: passou uma semana de cama, a pensar no sentimento que mais o consumia — se o desejo de estrangular o revisor ou a vergonha que sentia dos leitores...


(CAMINHA, Edmílson. Lutar com palavras. Diário do autor escrito no período de agosto de 1998 a dezembro de 2000. Brasília: Thesaurus, 2001, p. 147-148)

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Falsas atribuições de autoria, parte XVIII

Atentado a bomba contra a sede da Civilização Brasileira, em 14 de outubro de 1968


A famigerada máxima “Quem não lê, mal fala, mal ouve, mal vê” é frequentemente atribuída, Internet afora, a Monteiro Lobato, Malba Tahan e Alfredo Maia. Alguns livros também fazem essas referências, todas elas equivocadas, e é bem provável que a qualquer momento inventem mais outras atribuições de autoria. Além de essas menções serem levianas ou até desonestas, contribuem para deixar no esquecimento um peculiar fato histórico envolvendo tal frase.

Ela é, na verdade, o slogan adotado* pelo editor Ênio Silveira (1925-1996) para a Civilização Brasileira, editora que ele dirigiu por décadas. Durante os anos 60, na fachada da sede da editora, localizada na rua Sete de Setembro (Rio de Janeiro, capital), ele mandou fixar um grande cartaz com esses dizeres, consagrados como o lema da casa.

Em 1968, dois meses antes do AI-5, um atentado a bomba na sede — que publicava autores de esquerda e servia como ponto de encontro de vários intelectuais — destruiu parcialmente essa fachada (foto), tendo o cartaz resistido ao 
terror cultural, expressão criada na época pelo escritor Tristão de Athayde e que chegou até mesmo a ser usada pelo então ditador Castelo Branco ao questionar seu chefe de gabinete militar, Ernesto Geisel, sobre a necessidade de (uma nova) prisão do grande editor, já então detido várias vezes durante seu governo.

Moral da história: Quem não consulta referências, mal sabe, mal cita, mal lê.



* Nenhuma das fontes consultadas afirma literalmente que tal lema tenha sido criado por ele mesmo, embora isso pareça possível, já que se tornou originalmente conhecida como slogan de sua editora.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

O marquês do improviso

Dizem que Francisco Villela Barbosa (1769-1846), Marquês de Paranaguá, teria sido um dos nossos maiores poetas se a política não tomasse todo o seu tempo, deixando de consagrá-lo como um de nossos melhores improvisadores.

Poucos antes de morrer, ele jogou à fogueira preciosa coleção de poesias, de significativo valor literário. Um ou outro desses escritos e ligeiros improvisos, nunca publicados, chegaram a ser guardados por algumas pessoas.

Este trecho, retirado do artigo "Poetas repentistas", publicado no periódico Revista Popular (Rio de Janeiro) em 1862, relata a ocasião em que ele conheceu sua esposa, encantando-a de imediato com alguns versos improvisados:


domingo, 30 de agosto de 2015

Os assassinos do suicida: censura de livros durante a era Pinochet

O escritor chileno Gustavo Olate ficou preso
durante três meses em Villa Grimaldi

A ditadura de Pinochet desconfiava particularmente de livros e autores, sendo os confiscos comuns nas livrarias. Certa vez, o chefe de um destacamento militar ordenou o recolhimento de uma obra intitulada Cubismo. Ele tinha certeza de que aquilo tinha algo a ver com a Revolução Cubana...

Outra vítima foi o escritor Gustavo Olate. Ele havia publicado, em março de 1973, seis meses antes do golpe de Estado, um romance policial e de intriga psicológica chamado Los asesinos del suicida ("Os assassinos do suicida"). Após a morte de Salvador Allende no Palácio de La Moneda, morte que, segundo a tese oficial, foi causada por suicídio, o título dado com toda inocência ao livro por Olate tornou-se perigoso. O autor permaneceu detido por três meses até a confusão ser esclarecida, quando lhe informaram-lhe que a proibição continuaria a vigorar — a menos que ele mudasse o título da obra.

O falecido Erich Rosenrauch, austríaco de nascimento que viveu no Chile desde a tenra idade, publicou um romance em 1973 intitulado Muertos útiles. Todos os exemplares foram apreendidos, e Rosenrauch, cujos pais tinham emigrado para o Chile fugindo da perseguição nazista, foi preso. Soltaram-no quando os militares descobriram que o título do romance não tinha o significado presumido, mas o livro jamais foi liberado, e o manuscrito perdeu-se em consequência da apreensão durante as buscas na casa do autor.

(EDWARDS, Jorge. El libro, ese objeto peligroso. Cauce, Santiago, ano 1, n. 6, p. 24-25, jan./fev. 1984; MUÑOZ, Heraldo. A sombra do ditador: memórias políticas do Chile sob Pinochet. Rio de Janeiro: Zahar, 2010)


segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Toninho Vernáculo, chefe da revisão



Algumas atividades entortam as pessoas. Umas entortam o corpo, como as pernas arqueadas dos caubóis, a corcunda dos alfaiates, os braços desiguais dos tenistas, os ombros dos nadadores, a lordose das bailarinas de tchan music. Outras atividades — como a de polícia, agente financeiro, jornalista — entortam a cabeça. Meu amigo era jornalista.

Era. Meio que pirou. Isto já é o meio da história, vamos ao começo. Era copidesque, do tempo em que o copidesque tinha poder nas redações: reescrevia, corrigia e titulava as matérias. Não possuía nenhum talento especial, a não ser a intimidade com a gramática. Nem era jornalista formado, havia parado no meio o curso de Direito, fascinado pela oportunidade de trabalhar na “cozinha da redação”. Refogava concordâncias, descascava solecismos.

Chamava-se Antônio. Por ser baixo virou Toninho. E pela devoção à gramática Toninho Vernáculo ficou sendo. Seu talento valeu-lhe uma promoção, de copidesque para chefe da revisão. Passou anos e anos corrigindo originais. Novas tecnologias invadiram as redações no final da década de 1980. Com os computadores, acabou-se a revisão. Ao leitor, as batatas.

Toninho Vernáculo foi deixado num canto, espécie de dicionário vivo. Recorriam a ele quando tinham preguiça de consultar o manual. Irritava-se. Então, meio que piorou. Achava que alguns tinham questões pessoais com a língua portuguesa, arranca-rabos com a sintaxe. Um não suportava a crase. Aquele tinha escaramuças com o infinitivo pessoal. Outro abominava a regência. Toninho não aguentou, aposentou-se.

Novos desafetos da língua passaram a provocá-lo pela televisão, em casa. O ator Antônio Fagundes vinha andando para a câmera e atacava o pleonasmo: “Há muitos anos atrás investi no boi gordo”. A repórter de feira dizia que “o” alface encareceu. Lula confiava “de que” o partido sairia fortalecido. O jingle publicitário apelava: “Vem” pra Caixa você também! Toninho brigou com a tevê:

— É venha! Venha você! Vem tu!

Uma ótica anunciava: faça “seu” óculos... Meu amigo largou a tevê, pegou o jornal: vendas “à” prazo. Sentia-se acuado, pessoalmente agredido. Um dia, lendo Monteiro Lobato, topou com o conto “o colocador de pronomes”, no qual o personagem sai pela cidade corrigindo pronomes malcolocados. Iluminou-se. Era um recado.

Hoje, Toninho Vernáculo é um dos dois ou três santos da ortografia que andam por São Paulo corrigindo o português nas placas das padarias, nos cardápios dos restaurantes populares, nos anúncios classificados dos jornais. Telefona para os anunciantes:

— Olha, vendas a prazo não tem crase. Não se usa antes de palavra masculina.

Telefona para as regionais da Prefeitura, exigindo a retirada do acento agudo de placas de ruas e praças: Traipu, Itapicuru, Pacaembu, Barra do Tibagi, Turiassu (“é com c cedilhado”, implora)... Centenas de casos. Há dias encontrei-o comprando tinta e escada. Anunciantes de cerveja não quiseram mudar um cartaz, tinham rido dele. É um advérbio em “mente” abreviado, disseram, significa redondamente, de modo redondo. Retrucou: por que não de maneira redonda? Outros opinaram: é locução, como “fala grosso”. Protestou: chuva cai fininha, sol nasce quadrado, lua nasce quadrada. Riram. Resmungou: fiquem com a sua opinião, eu fico com a minha. Ia partir para a guerrilha armado de tinta e pincel, atacar os painéis de madrugada:

— Uísque é que desce redondo. Cerveja desce redonda!



(ÂNGELO, Ivan. Guerrilha urbana. In: ______. Melhores crônicas de Ivan Ângelo. Seleção e prefácio Humberto Werneck. São Paulo: Global, 2007.)

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Festa da diversidade gramatical

10 de junho: Dia da Língua Portuguesa. O purista — que namorava a norma-padrão — chegou À festa, sentou-se À mesa e achou que não tinha DE beber nada, mas reclamou dos modos regenciais do linguista, que chegou NA festa, sentou-se NA mesa e estava namorando COM uma variante popular estigmatizada, berrando que tinha QUE beber todas.

terça-feira, 9 de junho de 2015

Só pode ser culpa do revisor



Um jornal do Rio de Janeiro publicou, não há muito, na manchete, a locução adverbial “à beça, com cê-cedilha, como manda o figurino. O diretor foi à redação, reclamar do redator-chefe:

— O senhor viu a manchete?

— Vi.

— Quem é o responsável?

O redator-chefe chamou o editor:

— O senhor viu?

— Vi.

— Quem é o responsável?

O editor chamou o secretário:

— Viu?

— Vi.

— Quem é?

O secretário chamou o chefe do copidesque:

— Viu?

— Vi.

— Quem?

O chefe do copidesque chamou um sofredor de sua seção:

— Quem?

O reescrevedor chamou um repórter:

— Passei a notícia pelo telefone.

Assim, voltou do reescrevedor para o chefe do copidesque, deste para o secretário, para o editor, para o redator-chefe e para o diretor, a informação de que ninguém na redação era responsável. Em consequência, chamaram o chefe da revisão. E o diretor foi severo:

— O senhor viu “beça, com cê-cedilha, na manchete?

— Vi, sim, senhor. Vi em cima da hora. Se não chego a tempo, saía com dois esses...

O diretor perdeu o rebolado. Esperava tudo, menos aquela informação de que dois esses estariam errados. Mas não perdeu a dignidade de diretor:

— Espero que isso não se repita.

— Isso o quê?

—  O senhor ser forçado a trocar letras em cima da hora.

— Sim, senhor.


(HOLANDA, Nestor de. Ignorância ao alcance de todos: cartilha da analfabetização sem mestre. 6. ed. Rio de Janeiro: Letras & Artes, 1965)

terça-feira, 2 de junho de 2015

Falta de concordância

Ela era breve; ele, prolixo.
Ela lhe dava bjs abreviados; ele queria beijos por extenso.
Línguas diferentes, não trocavam palavras nem saliva.
Enfim o impasse foi aceito:
por ela, com ponto final;
por ele, com reticências...

sábado, 25 de abril de 2015

Os anus de Rubem Alves

Fotografia de Flávio Cruvinel Brandão (2007).

Revendo as correções que uma revisora fizera num texto meu, segundo o Aurélio, encontrei esta frase divertida: ... e os anus fazendo os barulhos que lhes são característicos.... Que é que você conclui? Que estou escrevendo sobre gases fétidos barulhentos expelidos pelo orifício terminal do intestino. Não é nada disso. Falo sobre barulhos que fazem as aves anús, palavra que, segundo o Aurélio, não tem acento. A palavra que tem acento, talvez por estar localizada no assento, é ânus... Por via das dúvidas, ponho acento agudo, no u dos anús. Não quero que pios de anús sejam confundidos com puns.

(ALVES, Rubem. Por uma educação romântica. 9. ed. São Paulo: Papirus, 2002)

segunda-feira, 20 de abril de 2015

A lei de Murphy e o hífen perdido

Se alguma coisa pode dar errado, dará. E mais: dará errado da pior maneira, no pior momento e de modo que cause o maior dano possível. 
Edward Aloysius Murphy Jr. (1918–1990)


Lançamento da sonda Mariner I (1962)
O desastre ocorrido com a primeira sonda interplanetária dos Estados Unidos foi extremamente oneroso e quase pôs um fim prematuro a toda a exploração espacial americana. A Mariner I havia sido derrubada pela falta de um hífen.

Quando a “corrida espacial” entre os Estados Unidos e a União Soviética começou, em fins da década de 50, o Laboratório de Propulsão a Jato da Nasa (JPL) apresentou planos grandiosos para uma série de sofisticadas sondas espaciais, a serem denominadas Mariner. O lançamento dessas grandes sondas, contudo, dependia de um novo foguete mais poderoso, o Atlas-Centauro, cujo projeto mostrou-se problemático. O JPL, finalmente, teve de satisfazer-se com um desenho menos sofisticado, batizado, de início, Mariner Ranger, ou apenas Mariner R, que seria lançado pelos propulsores Atlas-Agena B, então disponíveis. O programa Mariner, mesmo assim, custou mais de US$ 500 milhões.

A Mariner I deveria ser a primeira espaçonave interplanetária destinada a explorar os planetas mais próximos, ou seja, Vênus, Mercúrio e Marte. A sonda não tripulada tinha asas com células para captação de energia durante a jornada e dispunha de instrumentos para estudar Vênus, o planeta almejado. Ela foi lançada em 22 de julho de 1962. Cerca de quatro minutos depois do disparo, contudo, o lançador executou uma manobra não programada e começou a desviar-se do curso. O oficial da Nasa incumbido da segurança tinha menos de um minuto para decidir entre interromper o lançamento (e destruir milhões de dólares em equipamento) ou permitir o prosseguimento do voo (e correr o risco de uma sonda espacial errante cair em área populosa ou em rota de navegação). A decisão foi de abortar a missão. 


Deu no NY Times...
Duas foram as causas do acidente, de acordo com a investigação subsequente da Nasa. Primeiro, ocorreu um problema com o sistema de orientação a rádio do foguete. Para essa eventualidade, porém, os planejadores da missão estavam preparados com um computador de orientação sobressalente que entraria em missão em caso de falha do sistema principal. Infelizmente, o programa do computador de orientação continha um erro minúsculo, mas fatídico. Faltava-lhe um único caractere, nada mais que um hífen. Em consequência do hífen perdido — possivelmente, um erro tipográfico, ou omissão do programador —, a espaçonave passou a fazer mudanças de curso desnecessárias. O hífen (indicando ajustamento estatístico) não foi incluído na expressão “R-dot-bar sub n” (“n” = valor ajustado da derivada de raio). O certo seria “R-dot-bar sub-n”. O erro levou o software a tratar pequenas variações normais de velocidade como alterações sérias, o que induziu o computador a promover automaticamente uma série de mudanças de curso, emitindo comandos de orientação impróprios, que afastaram a espaçonave do curso certo. O erro de programação não foi detectado nas verificações prévias, talvez por negligência decorrente do excesso de segurança, uma vez que o sistema de orientação a rádio nunca falhara durante os testes. Um relatório específico posterior explicou a ocorrência da seguinte forma:


“Não se sabe por quê, faltou um hífen no programa de orientação do computador de bordo, o que levou instruções falhas a comandar o foguete, desviando-o para a esquerda e para baixo... Basta dizer que a primeira tentativa de voo interplanetário dos Estados Unidos fracassou pela falta de um hífen.”

O veículo custou mais de US$ 80 milhões, o que levou o escritor de ficção científica Arthur C. Clarke (1917–2008) a referir-se ao erro como “o hífen mais dispendioso da história”.


(WEIR, Stephen. A lei de Murphy e o hífen perdido. In: ______. As piores decisões da história. Rio de Janeiro: Sextante, 2014, p. 190-193)


Observação: A verdade é que a Nasa, o escritor Arthur Clarke e o New York Times cometeram um equívoco histórico (e que perdura até hoje, tanto que foi inconscientemente reproduzido pelo autor do livro cujo trecho é supracitado) na descrição do sinal ausente como hífen; trata-se de um traço sobrescrito, mais conhecido como overline ou superscript bar, usada na fórmula matemática em questão




Tal equívoco se consagrou e até as mais diversas e recentes publicações sobre o caso falam em hífen. Em suma: um erro em cima de outro erro, deixando o errado ainda mais errado.

segunda-feira, 13 de abril de 2015

O revisor Baudelaire: Les erreurs du mal


Um livreto de 1848, que trazia um texto de Edgar Allan Poe traduzido por Baudelaire, foi destruído a pedido do tradutor por causa de um erro em seu nome. Na capa se lia “Beaudelaire”. Talvez esse evento tenha gerado uma preocupação incurável, quase enfermiça, de Baudelaire pelas erratas. Ele, descuidado com todas as suas coisas, tornou-se implacável. Corrigia pessoalmente. Mudava-se para perto da tipografia durante o período de edição de um algum de seus livros. Vigiava, pedia provas constantes. Depois do martírio desse afã de correção, a edição de As flores do mal saiu com erratas. Algumas perturbadoras, como a mudança do título de um poema, ou vie por ville. Essas erratas têm criado largas discussões entre os críticos e um elemento de imprecisão em certos poemas. O leitor, apesar do trabalho denodado de Baudelaire, ignora realmente o que disse o poeta em alguns versos. Após sua morte, as primeiras provas corrigidas por sua mão infatigável foram levadas a leilão público. Foram vendidas por 40 mil francos, valor que ele não ganhou em toda a sua vida.

(ARRUFAT, Antón. De Las Pequeñas Cosas. Valencia: Editorial Pre-Textos, 1997, p. 142-143)

Provas corrigidas de Flores do mal (1857) com diversas anotações de Baudelaire

Em dezembro de 1856, quando seu relacionamento com Michel Lévy, o editor de suas traduções de Poe, estava passando por um período difícil, Baudelaire repentinamente recorreu a Auguste Poulet-Malassis, um jovem publicador de Alençon, na Normandia. O poeta confiou ao seu futuro amigo a tarefa de imprimir e publicar um livro de poesias, em sua maior parte composto por textos reunidos durante os últimos cinco anos, e que, até então, só haviam aparecido em periódicos. Poulet-Malassis tinha a reputação de ser um editor honesto e também – o que seria o fator decisivo – um tipógrafo de categoria. A intenção era montar um livro, insistia Baudelaire, “uma obra de material bom, apesar de escasso, que parecesse substancial e fosse bem apresentado”. Uma vez que o manuscrito, preparado por um copista, tinha desaparecido, juntamente com quase todo o conjunto de provas tipográficas corrigidas, que provavelmente estavam manchadas demais para serem mantidas, essas provas de prelo são, hoje, o único documento que nos permite reconstruir a gênese de As flores do mal, da remoção da primeira dedicatória a Théophile Gautier, em 8 de março de 1857, até as últimas correções, realizadas na segunda metade de maio. Entre idas e vindas entre Alençon e Paris, elas comprovam o cuidado atento do autor para com a ortografia (moderadamente tradicional), a pontuação (de acordo com o significado, mas também com a “declamação”) e o layout. Elas registram as perguntas e os pedidos de Poulet-Malassis (raivosamente rabiscadas por Baudelaire) para corrigir e devolver rapidamente as últimas provas tipográficas. Além disso, as anotações do poeta e algumas recomendações são evidência de sua tensão nesse período crucial e da ansiedade que o tornava indiferente com relação à exasperação do editor que ele tinha escolhido, como ele o lembrava, porque ambos compartilhavam da ideia de que “em qualquer tipo de publicação, nada mais é admissível a não ser a perfeição”.

(THE EUROPEAN LIBRARY. Corrected page proofs of Les Fleurs du mal. 6 mar. 2014. Disponível em:
 <http://www.theeuropeanlibrary.org/tel4/record/1000093325392>. Acesso em: 2 abr. 2015).

domingo, 5 de abril de 2015

Mulder & Scully = Holmes & Watson

Cenas do episódio Fogo (1ª temporada, 1993). Legendas em português da Netflix

O relacionamento entre Mulder e Scully, agentes do FBI protagonistas da série Arquivo X, é inspirado na relação entre os personagens de Sir Arthur Conan Doyle — Sherlock Holmes e John Watson, respectivamente. E ambos, Mulder e Scully, estão completamente cientes dessa semelhança. Em Fire (11º episódio da 1ª temporada, dezembro de 1993), Scully diz: So, Sherlock, is the game afoot?. E Mulder responde: I’m afraid so, Watson. A expressão vem do conto A granja da abadia (The Abbey Grange, 1904), em que Holmes diz: Come Watson, come! The game is afoot!.[1] Scully tem toda a razão: Mulder é Holmes. Ele até parece Holmes: bem-vestido, alto, magro e lânguido. Mulder também gosta de deitar e descansar assistindo à TV, assim como Holmes descansa ouvindo música; e ambos são inteiramente brilhantes (Mulder, de fato, tem uma memória fotográfica). O cenário de Arquivo X também é muito holmesiano, um aspecto criado pelo produtor da série, Rob Bowman: Por causa do nevoeiro, das condições nubladas durante a maior parte do tempo e da chuva, Arquivo X manteve um pouco de Sherlock Holmes [...].
"Come Watson, come! The game is afoot! Not a word!
Into your clothes and come!" (Ilustração de Sidney Paget, 1904)

Scully também está certa de que ela interpreta o Watson para o Holmes de Mulder. Ela também é médica, assim como Watson. Seu papel como médica é significativo, porque os médicos são detetives, também, de alguma forma; leem sintomas do paciente e detectam a causa, por vezes, uma doença, ou às vezes um crime. Scully também está  como ela corretamente observa — quase sempre dois passos atrás de Mulder, assim como Watson em relação a Holmes. O que eu estou pensando, Mulder, diz Scully, é a forma como isso me soa familiar. Interpretando Watson para o seu Sherlock. Você me exibindo pistas, uma a uma. É um jogo... e, como de costume, você está escondendo alguma coisa de mim. Você não está me dizendo alguma coisa sobre este caso (Fight Club, 20º episódio da 7ª temporada). Scully pode seguir Mulder, porque ela é uma detetive — está simplesmente muito mais próxima da sólida evidência empírica.
Cenas de Clube da Luta (7ª temporada, 2000)
Enquanto a mente de Mulder já andou passos à frente para uma conclusão quase sempre bizarra (‘ele é um vampiro, ou um monstro, ou um demônio, ou um alienígena’), Scully, por outro lado, pensa como nós; e nós, os espectadores, somos destinados a nos identificar com sua personagem, assim como nos identificamos com Watson. E, assim como nós aprendemos sobre o gênio de Holmes por meio das perguntas de Watson, Scully faz as nossas perguntas, e Mulder fornece as respostas brilhantes.”

(Extraído de SKOBLE, Aeon J.; SANDERS, Steven M. Philosophy of TV Noir. Lexington: University Press of Kentucky, 2008)

Vale observar o que declarou certa vez o criador da série, Chris Carter: “Eu não era um grande fã de ficção científica. Todavia, eu amava Júlio Verne e Sherlock Holmes. Ambos entraram em jogo em Arquivo X”.






[1] De acordo com Leslie Klinger, um dos maiores especialistas do mundo em Sherlock Holmes, “valendo-se de seu conhecimento de Shakespeare (adquirido, sugerem alguns, no curso de sua breve carreira de ator), Holmes parafraseia Henrique IV, parte I, Ato I, Cena 3: ‘Before the game is a-foot’ (literalmente: ‘Antes que a caça seja levantada’) e Henrique V, ato III, Cena 1: ‘The game is afoot!’. Apesar da identificação pública da expressão com Holmes, não há registro de que ele a tenha usado em outro contexto; o próprio Watson usa a expressão uma vez no conto Vila Glicínia (1908). Ela, é portanto, um grau mais respeitável que o popular ‘Elementar, meu caro Watson’, que não aparece em nenhum lugar do Cânone”. Em outras traduções publicadas em português, temos “o jogo está em andamento”; “o jogo começou” etc. A série Sherlock, da BBC, atualizou a fala de Holmes para “The game is on”.