quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Copidesque: o idiota da objetividade

Nelson Rodrigues (1912–1980)


“[...] o Diário Carioca mudara-se da praça Tiradentes e construíra ali, na Presidente Vargas, a sua sede própria. Em sua casa nova, iria promover uma revolução na imprensa brasileira, adotando a técnica americana de uniformizar os textos e implantando a novidade do copy-desk — o redator encarregado de escoimar as matérias de verbos como, por exemplo, escoimar. Ninguém mais podia ser literato na redação, a não ser em textos assinados, e olhe lá. As reportagens do Diário Carioca tinham de ser objetivas e, logo nas primeiras linhas, dizer quem, quando, onde, por que e como o homem mordera o cachorro. Se fosse o contrário (mesmo que atendidas as exigências do o que, quem, quando, onde, por que e como), não interessava. Isso chamava-se lead — no fundo, um simples qui, quae, quod com Ph.D. em Chicago.

A revolução do lead e do copy-desk fora implantada no Diário Carioca por Danton Jobim, diretor do jornal, e Pompeu de Souza, redator-chefe, e ameaçava espalhar-se pelos outros jornais. Danton era um velho amigo de Nelson desde A Manhã e Crítica; e Pompeu, ainda seu comparsa de garçonnière. Isso não impediu Nelson de reagir contra a instituição do copy-desk. A busca da ‘objetividade’ significava a eliminação de qualquer bijuteria verbal, de qualquer supérfluo, entre os quais os pontos de exclamação das manchetes — como se o jornal não tivesse nada a ver com a notícia. Suponha que o mundo acabasse. O Diário Carioca teria de dar essa manchete sem um mínimo de paixão. Nelson, passional como uma viúva italiana, achava aquilo um empobrecimento da notícia e passou a considerar os copy-desks os ‘idiotas da objetividade’.

‘Se o copy-desk já existisse naquele tempo’, dizia, ‘os Dez Mandamentos teriam sido reduzidos a cinco.’

Nelson admitia que a imprensa do passado — a imprensa de seu pai — cometia excessos. (Certas manchetes antigas tinham três pontos de exclamação!) Mas esfriar a notícia daquele jeito, como queriam os copy-desks, pressupunha que os leitores tivessem uma alma de mármore, o que não era verdade.

[...] Quase todos os primeiros copy-desks eram amigos de Nelson, o que tornava suas provocações ainda mais saborosas. Um deles, Moacyr Werneck de Castro, fingiu suspirar fundo e admitiu para Nelson: ‘Eu sou um ‘idiota da objetividade’.”

(CASTRO, Ruy. O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 230-231.)