domingo, 23 de junho de 2013

De poesia do socialismo português a canção do rock brasileiro

Reinaldo Ferreira (1922-1959):
joia literária a ser (re)descoberta

Reinaldo Edgar de Azevedo e Silva Ferreira (1922–1959) foi um poeta português singular. Nunca teve um só livro publicado em sua breve vida, passada toda em Moçambique, mas deixou um legado tão marcante e significativo que até levou críticos literários a compará-lo estilisticamente a Fernando Pessoa. A descrição mais recente de sua vida e obra foi publicada no livro Poesia do Socialismo Português (2010).

Sua obra completa — que jamais contou com uma publicação impressa na íntegra — pode ser visualizada inteiramente neste link.

Apesar de certo ostracismo (talvez seja um poeta mais lido por autores que por leitores), alguns poemas de Reinaldo Ferreira foram musicados por compositores portugueses. Curiosamente, um deles foi musicado (tendo seu texto levemente modificado) no Brasil, em meados dos anos 80, por Edgard Scandurra, guitarrista da banda IRA!, que lançou a música em 1988 no disco Psicoacústica (elogiado pela crítica, mas fracasso de vendas):


Receita para se fazer um herói*

Tome-se um homem, 
Feito de nada, como nós,
Em tamanho natural.

Embebece-se-lhe a carne,
De um jeito irracional,
Como a fome, como o ódio.

Depois, perto do fim,
Levanta-se o pendão,
E toca-se o clarim.

Serve-se morto.


A canção pode ser ouvida aqui.

O amado e odiado LP "Psicoacústica", lançado em 1988
Scandurra tomou conhecimento desse poema no início dos anos 80 ao servir no Exército, ocasião em que conheceu o soldado Esteves, que havia lhe apresentado picaretamente o texto como sendo de sua autoria. O nome do soldado saiu nos créditos (Esteves, cadê você?, perguntava no encarte o guitarrista, cujo contato havia se perdido), mas, assim que a canção começou a fazer sucesso nas rádios FMs da época e se tornou um hit, Esteves reapareceu na vida de Scandurra e reclamou uma grana absurda pela autoria, ameaçando pedir na Justiça o recolhimento do disco nas lojas. Isso acontecia ao mesmo tempo que uma leitora daquela que foi um dia a mais popular revista especializada em música do país, Bizz, acusava a banda de plágio porque havia lido a letra da música num livro de História. De acordo com um jornalista da Bizz, José Flávio Jr., toda a confusão só foi esclarecida quando a viúva do poeta português foi localizada e encontrada (observem que esse caso dificilmente teria chegado a tal ponto nos dias de hoje, em que uma consulta ao Google se faz suficiente para se comprovar muitas autorias).

Por causa dum soldado picareta do Exército, um poema português se transformou num sucesso de rock radiofônico no Brasil dos anos 80. E, sem essa picaretagem e a posterior musicação do poema, provavelmente eu estaria ignorando até hoje a existência de Reinaldo Ferreira e sua interessante poesia.



* O título original do poema é Receita de herói; seu texto original (uma referência implícita às receitas culinárias) é: "Tome-se um homem feito de nada/ Como nós, em tamanho natural/ Embeba-se-lhe a carne/ Lentamente/ De uma certeza aguda, irracional/ Intensa como o ódio ou como a fome./ Depois, perto do fim/ Agite-se um pendão/ E toque-se um clarim./ Serve-se morto."

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Origem e história das minúsculas

Trecho do Manuscrito de Freising (séc. X),
um dos mais belos exemplos de minúscula carolíngia

As maiúsculas, todo mundo sabe: primeiro apareceram nas fachadas e nos monumentos de Roma no século I como elemento decorativo que enfatizava o poder dos romanos no começo da era cristã. Mas e a caixa-baixa? Aconteceu no século VIII, sob o reinado de Carlos Magno, o rei do mundo naquela época. Carlos Magno convocou o escriba-mor da corte, o Bispo Alcuin, na cidade de York, e encomendou-lhe uma letra que fosse bela, legível e fácil de escrever.

Alcuin criou uma letra maravilhosa chamada “Minúscula de Carlos Magno” ou Minúscula Carolíngia. Essa letra passou a ser obrigatória para todos os escritos do rei, que queria assim fazer com que todos lessem a Bíblia do mesmo jeito, dando-lhe uma interpretação padronizada (a igreja sempre por trás dos escribas). A Minúscula Carolíngia era usada em todas as situações, o que na verdade foi a primeira identidade visual racionalmente criada com objetivos pré-estabelecidos. Hoje em dia, é fácil datar os livros dessa época só pela sua letra. Mas a grande vitória da Carolíngia foi na Renascença, quando o alfabeto foi todo redesenhado. O padrão para as maiúsculas foi a Capitalis Romana do século I, e o padrão adotado para as minúsculas foi a carolíngia que, por um erro de datação, foi classificada como contemporânea da Capitalis, setecentos anos mais velha. Então, a maiúscula é filha da arquitetura clássica de Roma [...]. E a minúscula é filha da mão do bispo Alcuin, o grande calígrafo de Carlos Magno.

(GIL, Cláudio.  De onde vieram as minúsculas. In ORCADES, Carlos M. (Org.) Almanaque Tipográfico Brasileiro. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008, p. 16).