segunda-feira, 26 de maio de 2008

O negado sabor da infância

Encontrei Rose sem querer no Conjunto Nacional nesse último feriadão. Como sempre temos troceeentos assuntos para atualizar, foi preciso uma parada obrigatória na praça de alimentação do shopping. 'Bora comer no Bob's? 'bora...

Enquanto estávamos na fila fuçando o cardápio, não pude deixar de notar uma menina que aparentava ter uns oito, nove anos. Acompanhada de seu pai, que portava trajes um pouco surrados, vestia uma roupinha igualmente surrada, e também um pouco suja. Mesmo assim, com o mínimo de dignidade que aquelas roupas podiam lhes proporcionar, percebia-se que haviam se arrumado sim para sair e passear naquele fim de semana prolongado. Ela parou bem à nossa frente, e ficou olhando pro alto da lanchonete, boquiaberta, com os olhinhos fixos para o painel repleto de fotografias de sanduíches.





Há muito tempo eu não via tanto fascínio no rosto de uma criança.





E não se tratava do encanto de uma menina já acostumada a comer de vez em sempre naquelas lanchonetes, mas de uma que nunca tinha visto algo parecido antes, em toda sua vida. Imagine só o quanto toda aquela novidade colorida atiçava sua visão e provocava seu paladar. Dava pra ter certeza disso, só de ficar ali reparando nos seus olhinhos brilhantes, semi-lacrimejantes. Dava gosto de ver naquele rosto a alegria que precedia o prazer prestes a experimentar.


Após examinar atentamente cada imagem de sanduíche - e ainda boquiaberta - ela se virou e passou a fitar seu pai, um senhor de quarenta e tantos anos, de rosto castigado por tanto trabalho suado, mas que mal dava pra pagar um daqueles caros sanduíches. De boca aberta, mas sem articular uma só palavra, ela perguntou para o pai, com o olhar, se podia escolher um daqueles sedutores bigbob's. E o pobre-pai-pobre, com uma expressão de impotência, constrangimento e lamentação, balançou a cabeça para os lados balbuciando-lhe algumas palavras que eu entendi como "esses aí não dá não, é muito caro... 'bora ver outro lugar."

Ao se afastar da lanchonete, conduzida pelo pai, só tirou os olhos do painel do Bob's pra encarar os demais painéis, do Giraffa's ao Burger King, passando pelo McDonalds. Em vão, porque após uma volta dada por toda a praça de alimentação, o pai deve ter constatado que não tinha condições de realizar o desejo da filha.





E assim desceram pela escada rolante, em direção à saída.





Precisava pensar rápido: o que eu poderia fazer? Juro que queria fazer algo por ela; mas como ir até lá dizer ao pai que eu podia pagar o lanche cobiçado pela filha, sem constrangê-lo, envergonhá-lo ou no mínimo deixá-lo incomodado ou estranhado com a minha intromissão? Tarde demais. Senti-me impotente mas me dei por satisfeito em desabafar tudo isso com Rose, enquanto nos deliciávamos com nossos sanduichões.

Pensei comigo: deve tê-la levado pra lanchar na Rodô, afinal de contas um trio viçosa sai por uns R$ 2,00 e uns quebradinhos; nada que tenha tanto encanto e sabor - pelo menos o sabor que ela queria tanto ter provado.

Momentos após sair do shopping e me despedir da Rose, vejo três crianças, todas por volta dos seis anos, crias de uma família de indigentes, correndo penduradas num carrinho de supermercado, por entre as privilegiadas superquadras da Asa Norte. A alegria e o prazer com que se divertem junto ao brinquedo improvisado devem fazê-las desconhecer todo aquele tanto de mundo ao redor que lhes é negado. Mas o que será delas quando não for mais possível ignorar todo o sabor atraente desse mundo? O que vai acontecer quando elas amargarem a mesma sensação de negação e privação vivida pela menina boquiaberta e fascinada - e logo em seguida, frustrada - com o colorido da praça de alimentação?

Não, eu ainda não esqueci daquela carinha deslumbrada com o novo mundo recém-descoberto, e ao mesmo tempo negado. Me comovo toda vez que me lembro, e me comove ainda mais não saber que fim teve aquele olhar de encanto ao descer a escada rolante.





Meu Deus, eu nunca vou saber.