domingo, 30 de novembro de 2008

Longe da tela, perto de mim


Lá estava eu no meio daquele saguão do Cine Brasília, concentrado e aguardando alguém do outro lado da linha me atender no celular, quando vejo uma menina branquiiiinha, de olhar distante, que logo de cara me pareceu familiar: tinha acabado de assistir "Proibido Proibir" no DVD lá em casa naquela tarde, e agora aquela personagem do filme estava bem ali, com aquele mesmo jeitinho de se vestir, na minha frente, na companhia de um desconhecido. Tão simples, despojada e discreta que nem parecia atrair a atenção de cinéfilos e admiradores. A minha atraiu...


Fitei-a - devidamente paralisado - por vários segundos; após um certo intervalo, tornava a fitá-la. Posso jurar que em um momento ela chegou a perceber meu contido assédio visual, mas em sua natural discrição aceitou a reverência silenciosa que eu fazia. Até porque não a devorava com os olhos, só estava ali a apreciar a beleza que, em meu imaginário, se transfigurava alternadamente, ora em atriz, ora em personagem.


Eis que nova sessão se aproximava e outros jurados do Festival vieram chamá-la para junto deles. Com o corpo paralisado, só meus olhos a seguiram, rumando ao interior da sala de projeção.


Por alguns minutos, tive a menina Flor diante dos meus olhos. Como jamais terei por horas diante de uma tela.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

O negado sabor da infância

Encontrei Rose sem querer no Conjunto Nacional nesse último feriadão. Como sempre temos troceeentos assuntos para atualizar, foi preciso uma parada obrigatória na praça de alimentação do shopping. 'Bora comer no Bob's? 'bora...

Enquanto estávamos na fila fuçando o cardápio, não pude deixar de notar uma menina que aparentava ter uns oito, nove anos. Acompanhada de seu pai, que portava trajes um pouco surrados, vestia uma roupinha igualmente surrada, e também um pouco suja. Mesmo assim, com o mínimo de dignidade que aquelas roupas podiam lhes proporcionar, percebia-se que haviam se arrumado sim para sair e passear naquele fim de semana prolongado. Ela parou bem à nossa frente, e ficou olhando pro alto da lanchonete, boquiaberta, com os olhinhos fixos para o painel repleto de fotografias de sanduíches.





Há muito tempo eu não via tanto fascínio no rosto de uma criança.





E não se tratava do encanto de uma menina já acostumada a comer de vez em sempre naquelas lanchonetes, mas de uma que nunca tinha visto algo parecido antes, em toda sua vida. Imagine só o quanto toda aquela novidade colorida atiçava sua visão e provocava seu paladar. Dava pra ter certeza disso, só de ficar ali reparando nos seus olhinhos brilhantes, semi-lacrimejantes. Dava gosto de ver naquele rosto a alegria que precedia o prazer prestes a experimentar.


Após examinar atentamente cada imagem de sanduíche - e ainda boquiaberta - ela se virou e passou a fitar seu pai, um senhor de quarenta e tantos anos, de rosto castigado por tanto trabalho suado, mas que mal dava pra pagar um daqueles caros sanduíches. De boca aberta, mas sem articular uma só palavra, ela perguntou para o pai, com o olhar, se podia escolher um daqueles sedutores bigbob's. E o pobre-pai-pobre, com uma expressão de impotência, constrangimento e lamentação, balançou a cabeça para os lados balbuciando-lhe algumas palavras que eu entendi como "esses aí não dá não, é muito caro... 'bora ver outro lugar."

Ao se afastar da lanchonete, conduzida pelo pai, só tirou os olhos do painel do Bob's pra encarar os demais painéis, do Giraffa's ao Burger King, passando pelo McDonalds. Em vão, porque após uma volta dada por toda a praça de alimentação, o pai deve ter constatado que não tinha condições de realizar o desejo da filha.





E assim desceram pela escada rolante, em direção à saída.





Precisava pensar rápido: o que eu poderia fazer? Juro que queria fazer algo por ela; mas como ir até lá dizer ao pai que eu podia pagar o lanche cobiçado pela filha, sem constrangê-lo, envergonhá-lo ou no mínimo deixá-lo incomodado ou estranhado com a minha intromissão? Tarde demais. Senti-me impotente mas me dei por satisfeito em desabafar tudo isso com Rose, enquanto nos deliciávamos com nossos sanduichões.

Pensei comigo: deve tê-la levado pra lanchar na Rodô, afinal de contas um trio viçosa sai por uns R$ 2,00 e uns quebradinhos; nada que tenha tanto encanto e sabor - pelo menos o sabor que ela queria tanto ter provado.

Momentos após sair do shopping e me despedir da Rose, vejo três crianças, todas por volta dos seis anos, crias de uma família de indigentes, correndo penduradas num carrinho de supermercado, por entre as privilegiadas superquadras da Asa Norte. A alegria e o prazer com que se divertem junto ao brinquedo improvisado devem fazê-las desconhecer todo aquele tanto de mundo ao redor que lhes é negado. Mas o que será delas quando não for mais possível ignorar todo o sabor atraente desse mundo? O que vai acontecer quando elas amargarem a mesma sensação de negação e privação vivida pela menina boquiaberta e fascinada - e logo em seguida, frustrada - com o colorido da praça de alimentação?

Não, eu ainda não esqueci daquela carinha deslumbrada com o novo mundo recém-descoberto, e ao mesmo tempo negado. Me comovo toda vez que me lembro, e me comove ainda mais não saber que fim teve aquele olhar de encanto ao descer a escada rolante.





Meu Deus, eu nunca vou saber.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Reitoria


paródia do poema "Pescaria" de Cecília Meireles*

Gritos de protesto e de ação.
Cheio de cartazes, em cada andar.
Cheiro de tinta pelo ar.
E stencils pelo chão.

Chora o reitor de amargura,
fora de sua cobertura.

Estudantes vêm e vão,
De mãos unidas pela reitoria
onde os ocupantes estão.

Seguranças e "polícias" vêm e vão,
em vão.
Não chegarão
ao andar da Ocupação.

Por isso chia, de teimosia,
o pobre reitor sem reitoria.


* poema original: http://zezepina.utopia.com.br/poesia/poesia177.html


sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Falsas atribuições de autoria

Muita gente atribui, em livros, blogs e sites, os versos abaixo a Vladimir Maiakovski:


Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.



Esse trecho de poema – que é apenas sua segunda estrofe – foi espalhado por vários jornais e zines universitários desde o final dos anos 60. O psicanalista Roberto Freire o citou na epígrafe de seu livro “Viva eu, viva tu, viva o rabo do tatu” (que fez muito sucesso nos anos 70), dando crédito ao poeta russo e atribuindo ao poeta carioca Eduardo Alves da Costa sua tradução, quando na verdade era este ninguém mais ninguém menos que o próprio autor do poema... tal erro pode ter se dado em virtude do próprio título desse poema, redigido em pleno 1968: “No Caminho com Maiakovski”. Desde então, o equívoco durou décadas: Foi publicado em diversos jornais com crédito para Maiakovski, sendo estampado até em camisetas da campanha Diretas Já nos anos 80, virando símbolo da luta contra o regime militar. E o engano só veio a ser esclarecido de fato em meados de 2003, quando nosso poeta tupiniquim finalmente lançou um livro cujo título é o mesmo do poema: No Caminho com Maiakovski. Nele, há um longo poema de 89 versos dedicado a Maiakovski (anteriormente ele foi publicado e divulgado, juntamente com a falsa autoria, num formato de 15 versos isolados do poema original). Até pouco tempo atrás, o autor nunca havia recebido sequer um tostão pelos direitos de publicação desse poema.

Os mesmíssimos versos também já foram atribuídos a Gabriel García Márquez, Bertolt Brecht, Wilhelm Reich, ao estadista africano Leopold Senghor e ao pastor luterano Martin Niemöller, que na verdade é autor de um poema com temática curiosamente semelhante, que circula por aí, com algumas variantes (inclusive também de autoria*):

Um dia vieram e levaram meu vizinho que era judeu.
Como não sou judeu, não me incomodei.
No dia seguinte vieram e levaram meu outro vizinho que era comunista.
Como não sou comunista, não me incomodei.
No terceiro dia vieram e levaram meu vizinho católico.
Como não sou católico, não me incomodei.
No quarto dia, vieram e me levaram;
Mas já não havia mais ninguém pra reclamar.




* Este texto do pastor luterano também circula por aí com a autoria atribuída a Bertolt Brecht.