terça-feira, 31 de maio de 2005

O (ou mais um) dia em que o rock salvou a minha vida


Rio de Janeiro, domingo, 21 de Janeiro de 2001: último dia do Rock In Rio 3. Cheguei às 15h35 na Cidade do Rock. Quando me dei conta já tava furando fila, me enfiando multidão adentro pra conseguir pegar, ainda no início, o show dos rudes plebeus. Ok... tô conseguindo. Já havia comparecido a três dias anteriores, embalado pelo som do Barão, Oasis, Engenheiros, Foo Fighters, Ira!, R.E.M, Neil Young... Dali já consigo ouvir os primeiros acordes de “Brasília”. Saio da confusão reinante na bilheteria, entro no embalo e me infiltro da multidão que superlotava a Tenda Brasil, palco onde se apresentava a banda mais engajada do rock tupiniquim – e não por acaso uma das minhas favoritas. Agora tá rolando “Johnny Vai à Guerra” e já me encontro bem posicionado na platéia-tumulto, evitando qualquer cabeção mais alto que eu à minha frente: não é fácil ser baixinho, principalmente em shows. Mas eu preciso chegar mais perto.

Pego então uma carona num trenzinho humano em direção ao gargarejo – e sigo cantando:
“... todos sabem a procedência / Mas não seu destinoooooooo...” após a canção, o vocalista se apresenta (como se isso fosse necessário): "Nós somos a Plebe Rude..." sabemos disso, Phillipe... é por isso que estamos aqui! E sem perder mais tempo... “Será verdade/ Será que não / Nada do que eu posso falar...” E naquilo que eu chamo de segunda introdução da música, “Pra sua proteçãooooo...” catarse coletiva: toda uma geração estava ali, saudosa. Há tempos muitos ali não assistiam a um show deles. Deve ser o caso daquele maluco lá que escalou um dos mastros e tá berrando lá do alto algo irreproduzível. Nossa, de onde veio essa rajada de cubos de gelo? Chegou em boa hora... deu uma refrescada boa.

Um hino: “... Com tanta riqueza por aí / Onde é que está / Cadê sua fração...” Jatos d’água pra refrescar os corpos suados. E fim do show. Inadmissível: não tocaram mais de quarenta e cinco minutos e não estavam nem no palco principal... fazer o quê, não são atração do momento nem têm jabá nas rádios... um choppinho pra aguardar a próxima atração.

E olha só quem me aparece, no meio da turba: Wagner! Velho parceiro de noitadas roqueiras... certo dia me viu em Taguatinga com uma camisa dos Smiths, e me abordou perguntando se era fã mesmo, dando início a uma bela amizade roqueira. E não tá sozinho: veio acompanhado de uma horda, muitos deles casados, com filhos e saudosos dos anos 80... anos que nunca terminaram: basta conferir as bandas escaladas pro festival. Deve haver outros amigos por aí espalhados pela Cidade, mas encontrá-los em meio a duzentas e cinqüenta mil pessoas dá preguiça... ‘caba de comer logo essa lasanha aí e vambora lá pra frente que vai rolar Biquini agora.


Tédio, Timidez... A multidão presente exibia uma sede insaciável pelo repertório dos anos 80, o que foi uma constante em todos os dias do festival: nos dias anteriores, o engenheiro Humberto Gessinger ressucitou o ex-RPM Paulo Ricardo, Fernanda Abreu chamou seu ex-parceiro da Blitz Evandro Mesquita na hora de cantar "Você Não Soube Me Amar", além de outras [des]atrações que não valeram a pena desenterrar. E eis que surge então a ressurreição do dia: Marcelo Hayenna do Uns & Outros é chamado ao palco: “Missionários de um mundo pagão/ Proliferando ódio e destruiçãooooo... a cada momento nostálgico como este que rolava no festival – e que não foram poucos – as pessoas se entreolhavam e trocavam sorrisos, como numa linguagem universal, como se quisessem dizer: “Lembra disso?” ou “Putz! Aquela música!”... vinha sonhando com isso durante muito tempo.

Logo em seguida, as modinhas do momento: Tijuana, Tia Anastácia... vamos sentar no ex-gramado da Cidade – que a essa altura era só terra e lama – pra fazermos um balanço dos dias anteriores: as garrafadas no Carlinhos Brown, o fiasco que foi o show do Guns, a dobradinha Ira! + Ultraje fazendo cover do Clash, as novas promessas (?) do rock nacional (Sheik Tosado, etc) e por aí vai. Olhando ao redor dava pra se convencer que a cidade do Rock era realmente uma cidade: enquanto algumas dezenas de milhares de pessoas pulavam em frente ao palco principal, era possível ver centenas de outras numa Tenda de Música Eletrônica, ao som dos DJs mais badalados do momento, além de outras dezenas circulando pelas lanchonetes, lojas de CDs (com os discos de todas as bandas do Festival, é claro), pelos terminais de banco e até agência de correios... já tô aqui mandando uns cartões postais da cidade (do rock, não do Rio). Enfim, dava pra passar uma semana inteira ali, tranqüilo. Tomar banho? Ué, tem uma galerinha ali se esbaldando embaixo do corredor de chuveiros... água para mais de 250 mil pessoas suadas, alcoolizadas, emaconhadas, roucas e cansadas.

O pessoal do Capital, com acústico recém-lançado, comemora seu retorno ao jabá das rádios e sua escalação para o palco principal. Dinho começa dizendo que é “um passageiro”, que "roda sem parar" e provavelmente daqui a pouco vai contar toda a história do Aborto Elétrico... deixa eu ir buscar mais um chopp então. É nessa que eu esbarro numa menina que vinha na contramão: desculpa! Não foi nada... juro que já tinha visto aquele rostinho em algum lugar. Várias vezes (dias depois, diante da TV, descobri que me esbarrei com uma tal de Samara Phellipo).

E o Capital Terminal se despede pra dar lugar ao Red Hot. A essa altura, a atmosfera de maconha já cobriu uma boa área ao redor do palco – e eu ali, fumando por tabela... já estamos partindo pra 10 horas de shows consecutivos aguardando o que seria a atração principal do dia – pra mim não era. Subitamente, a introdução porradística de “Around the world”. O som não tá legal. E quer saber? Minhas pernas não me agüentam mais em pé. Perái... deixa eu me deitar ali no chão. Putz... olha aquele cara ali, parece que foi pisoteado. E morto. Caso sério de overdose musical.

Caravana da despedida: ônibus municipais especialmente escalados pra fazer o itinerário Cidade do Rock – vários cantos do Rio dão partida e levam todos embora. Chego em Pavuna, na casa do primo onde estava hospedado no Rio lá pelas 4h45 da manhã de segunda-feira. Não. Não vou tocar a campanhinha e acordar todo mundo. Deixa eu deitar aqui no banco da praça, tirar um cochilo e esperar o dia amanhecer – daqui a pouquinho vai clarear. Se for atingido por alguma bala perdida do tiroteio que tá rolando ali na favela do Chapadão, não tem problema. Hoje morro realizado: minha camisa do Ira! tá imunda, calça e tênis idem, e meu rosto estampado com a satisfação de haver experimentado múltiplos orgasmos musicais.
Felicidade pra mim é música.